(*) Por: Paulo Henrique Cremoneze – Desde 9 de abril de 2024 o Brasil tem uma nova lei de seguros, atualmente em vacatio legis. Ela entrará em vigor em meados de dezembro de 2025. A expectativa é enorme e todos os que trabalham com o negócio de seguros e o Direito dos Seguros estão se organizando para ela. Encimada pela sentença “um seguro para todos”, a lei promete redesenhar o exercício dos seguros em nosso país, e é bastante inovadora em não poucos aspectos.
Há normas especialmente importantes sobre regulação e liquidação de sinistros e sobre agravamento de riscos. Tenho estudado muito a respeito desses temas, afins ao Direito dos Transportes, e ouvido grandes especialistas, como os amigos Adilson Campoy e Marcio Malfatti. Para meu cotidiano profissional, esses são os três temas mais importantes.
Mas há um quarto, que é relevantíssimo e que desejo comentar: a arbitragem.
No novo marco legal há quatro artigos que tratam direta ou indiretamente da arbitragem, sendo o art. 129 o mais importante:
Art. 129. Nos contratos de seguro sujeitos a esta Lei, poderá ser pactuada, mediante instrumento assinado pelas partes, a resolução de litígios por meios alternativos, que será feita no Brasil e submetida às regras do direito brasileiro, inclusive na modalidade de arbitragem.
O texto respeitou integralmente a Lei de Arbitragem, guardando com ela simetria e harmonia plenas. A arbitragem é permitida, senão incentivada, desde que negociada livre e previamente pelas partes e exercida no Brasil segundo o direito local. E a negociação há de ser formalizada por instrumento específico, assinado.
Como vivemos tempos em que até o óbvio precisa ser dito e reiterado, prontifico-me a tanto: impossível a arbitragem imposta unilateralmente, e que não esteja disposta em instrumento específico. Igualmente impossível a arbitragem em outro país segundo normas estrangeiras.
Considerando tudo isso, penso imediatamente em situação muito particular, alvo de minha devotada atenção: a imposição de arbitragem no exterior prevista no Bill of Lading, o instrumento contratual de transporte internacional marítimo de carga.
Para além da discussão de ser ou não a cláusula abusiva (e, portanto, ilegal) aos olhos do Direito brasileiro — a rigor, nem o embarcador, contratante do transporte, nem o consignatário da carga, beneficiário do transporte, dão a ela uma anuência livre —, interessa-me a defesa de sua ineficácia perante o segurador sub-rogado, que sequer é parte do contrato de transporte.
A eficácia ou não dessa cláusula ao segurador sub-rogado é um dos assuntos mais polêmicos e valiosos nos litígios de ressarcimento contra os transportadores marítimos.
Defendo, a exemplo dos colegas do mercado segurador, que a cláusula é ineficaz porque o segurador não é parte do negócio de transporte e, tendo ou não ciência da existência da cláusula, não anui de modo algum ao seu conteúdo. Além disso, não existe renúncia tácita à garantia fundamental de acesso à jurisdição, o que, com ainda mais razão, fere de morte não só a eficácia como a própria validade.
Mais do que ineficaz perante o segurador sub-rogado, a cláusula é inválida porque o segurado também não a negociou prévia e livremente. De fato, o segurado, que pode ser o embarcador ou o consignatário da carga, não tem opção alguma em relação ao combo clausular que o transportador lhe impõe.
O contrato de transporte marítimo internacional de carga, tipicamente de adesão, raramente oferece ao embarcador ou ao consignatário oportunidade de discutir e negociar cláusulas e condições. O controle é todo do transportador. Daí a hipossuficiência negocial, que não se confunde com a hipossuficiência fática ou econômico-financeira; a primeira existe sempre, a segunda não.
Essa cláusula presente no Bill of Lading e imposta unilateralmente pelo transportador também desrespeita a forma determinada pela Lei de Arbitragem, ora reafirmada pela Lei do Contrato de Seguro para o compromisso arbitral: instrumento específico e assinado pelas partes.
Há, então, um rosário de vícios e ilegalidades a impedir a validade ou, ao menos, a eficácia da cláusula em estudo. Apesar disso, não são poucas as decisões judiciais, monocráticas e colegiadas, a reconhecerem nela ambas as qualidades, prejudicando os legítimos direitos e interesses dos seguradores brasileiros e a própria economia do país.
A cláusula de arbitragem do Bill of Lading retira do país os pleitos de ressarcimento, esvazia a dignidade da Justiça do país e apequena o Direito brasileiro, fazendo-o espécie de ordenamento de segunda mão.
É certo que o Código de Processo Civil prestigiou o compromisso arbitral; é certo que a arbitragem é algo muito bom e que há, mesmo, de ser desenvolvida no Brasil, porém não é menos certa a necessidade da voluntariedade, que é requisito fundamental e indispensável para vê-la instituída. O procedimento é nobre; mas ninguém pode impô-lo a ninguém, nem vetar a jurisdição para todo aquele que, ferido em seu direito, deseja ir a juízo defendê-lo.
Por isso, a partir de dezembro de 2025, o art. 129 da nova Lei de Seguros será perfeitamente invocável para sustentar a primazia da jurisdição nacional nos pleitos de ressarcimento movidos por seguradores sub-rogados contra transportadores marítimos. É certo que, à primeira vista, o dispositivo se dirige às relações entre os próprios atores do negócio securitário. Ainda assim, não vejo nada de errado em invocá-lo, ainda que a título subsidiário.
Afinal, o artigo expõe a necessidade de voluntariedade, de acordo prévio entre as partes, de respeito à forma e de uso da lei e da competência brasileiras.
Considerando que um dos atores do litígio é segurador e que o exercício do ressarcimento redesenha a relação jurídica original em não poucas medidas, acredito ser, sim, possível essa invocação para a boa defesa da jurisdição nacional, da plenitude do Direito e da boa ordem moral; e o faço com base em princípios fundamentais como os da proporcionalidade, da razoabilidade, da isonomia, da equidade e da boa-fé ampla.
Concluo este brevíssimo ensaio afirmando que sou, sim, entusiasta da arbitragem e pretendo vê-la usada com frequência e intensa regularidade nos litígios envolvendo seguradores sub-rogados e transportadores marítimos internacionais de cargas, desde que respeitada a essência e a forma determinadas pelo sistema legal brasileiro, a ser realizada em câmara arbitral no Brasil e segundo as regras legais brasileiras.
Para tanto, contarei, doravante, não apenas com a própria Lei de Arbitragem brasileira, mas também com a nova Lei do Contrato de Seguro, que é definitivamente uma lei para todos.
Paulo Henrique Cremoneze é sócio de Machado e Cremoneze – Advogados Associados, doutorando em Direito Civil pela Universidade de Coimbra, mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito dos Seguros pela Universidade de Salamanca e acadêmico da Academia Nacional de Seguros e Previdência.