O seguro paramétrico ainda não chegou à lavoura

(*) Por Daniel Miquelluti, especialista em seguro paramétrico e co-founder da Picsel – Apesar de estar entre os temas mais recorrentes nas discussões sobre inovação no campo, o seguro paramétrico ainda está longe de cumprir a promessa que o cerca. Nos últimos anos, o modelo foi promovido como resposta eficiente e moderna aos crescentes riscos climáticos na agricultura, uma espécie de “bala de prata” contra as incertezas do tempo e do mercado. Com pagamentos automáticos, baseados em índices como chuva, temperatura e NDVI, sem necessidade de vistorias, o modelo tem sido celebrado em conferências e relatórios setoriais. No entanto, enquanto o conceito brilha nos slides das consultorias, sua aplicação real permanece quase invisível na rotina do produtor rural brasileiro. A realidade ainda está distante da expectativa vendida.

A lógica por trás do seguro paramétrico é, de fato, promissora. Ele poderia solucionar os gargalos históricos do seguro rural tradicional, como os atrasos no pagamento, os custos elevados de regulação de sinistros, a escassez de dados para precificação e o difícil acesso a propriedades pequenas ou distantes dos grandes centros. Contudo, seu impacto ainda é tímido, reflexo de entraves estruturais que vão além da tecnologia. O modelo precisa mais do que um bom algoritmo: requer uma infraestrutura robusta de dados, uma distribuição capilarizada e um marco regulatório claro. Sem esses três pilares, o que poderia ser uma revolução no seguro agrícola vira mais uma inovação mal adaptada ao solo onde deveria florescer.

As experiências internacionais reforçam essa constatação. Nos Estados Unidos, o seguro agrícola cobre mais de 90% da área plantada, mas segue dominado por modelos tradicionais, subsidiados pelo governo federal. O seguro paramétrico avança apenas em nichos, como coberturas para furacões, e ainda enfrenta resistência jurídica devido ao “risco de base”, quando o índice não representa adequadamente as perdas do produtor. Na Índia, apesar de o país liderar programas de seguro massivo com subvenção pública, o modelo paramétrico só se mostrou viável ao ser adaptado a realidades locais, como no caso de trabalhadores rurais dispensados por ondas de calor. Na África, iniciativas de microseguros paramétricos via celular mostram que o potencial existe, mas exige criatividade, articulação institucional e foco em inclusão.

No Brasil, porém, o cenário é outro. Apesar de o seguro paramétrico já operar dentro das regras da SUSEP e do Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR), sua adoção ainda é marginal. Os produtos existentes representam uma fatia ínfima de um mercado que já é pequeno, menos de 20% da produção agropecuária nacional é segurada. E isso não ocorre por falta de interesse, mas por ausência de um ecossistema funcional. A escassez de sensores calibrados, a baixa penetração digital no campo e a dificuldade de comunicação entre os modelos atuariais e os produtores explicam a resistência. Enquanto o índice for percebido como uma “caixa-preta”, o agricultor continuará apostando na chuva ou no seguro tradicional.

Além disso, o modelo atual de distribuição ainda está mal ajustado à realidade do agro. Faltam corretores capacitados para traduzir o funcionamento dos índices em uma linguagem compreensível ao produtor. O campo não funciona no tempo da inovação, mas sim no ritmo das safras, e nenhuma tecnologia será bem-sucedida se não dialogar com quem lida diariamente com o solo, o clima e o mercado. A ausência de diretrizes regulatórias claras e de incentivos consistentes também afasta o capital segurador, que enxerga o produto como um experimento, não como política de Estado.

O caminho para a transformação existe, mas exige menos fetiche tecnológico e mais pragmatismo agronômico. Produtos híbridos, que combinem o pagamento rápido do paramétrico com a proteção sólida do modelo tradicional, podem aumentar a confiabilidade e reduzir o risco de base. Cooperativas, agroindústrias e instituições financeiras devem ser incorporadas como canais estratégicos de distribuição e contratação coletiva. E, acima de tudo, é urgente investir na padronização e transparência dos dados que alimentam esses modelos, porque o produtor pode aceitar o risco, mas não a incerteza contratual.

O seguro paramétrico não é uma panaceia, tampouco uma moda passageira. Ele é uma peça-chave no enfrentamento das mudanças climáticas e na modernização da gestão de risco agrícola. Mas para cumprir esse papel, precisa deixar de ser tratado como uma abstração acadêmica e se tornar uma política pública conectada à realidade do campo. O Brasil pode, sim, liderar essa transformação, desde que aceite a complexidade do desafio e decida, finalmente, sair do PowerPoint e pisar na terra.

*Daniel Miquelluti é cofundador e Head de Novos Mercados da Picsel, insurtech especializada em seguros agrícolas. Engenheiro Agrônomo com mestrado em Estatística Experimental e doutorado em Economia Aplicada na USP, atua há mais de uma década no desenvolvimento de soluções inovadoras em seguro rural. Já assessorou seguradoras, resseguradoras e órgãos públicos na estruturação de produtos e estratégias de gestão de risco climático no campo. Na Picsel, lidera projetos que combinam inteligência artificial, sensoriamento remoto e dados climáticos para transformar a operação de seguros agrícolas no Brasil.

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