Em 1896, Frederick L. Hoffman, estatístico da Prudential Life Insurance Company, publicou Race Traits and Tendencies of the American Negro, um estudo de mais de 300 páginas que buscava “comprovar” que os negros eram inasseguráveis.
O trabalho, encomendado pela Prudential em meio a legislações que proibiam a discriminação contra os negros norte-americanos, misturava estatísticas, teorias eugênicas e preconceitos raciais, tornando-se referência no debate do chamado “Problema Negro” nos EUA do final do século XIX.
Apesar de a obra ter sido celebrada à época, já havia quem criticasse suas bases frágeis e suas conclusões racistas. Ainda assim, ela consolidou um precedente perigoso: o uso da estatística e da ciência atuarial — campos ainda em formação — para sustentar ideologias de hierarquia racial e exclusão social.
O paradoxo é que Hoffman também se destacou na saúde pública, com estudos sobre câncer, tuberculose e mortalidade industrial, chegando a fundar organizações como a American Cancer Society.
Essa dualidade evidencia um cenário em que a indústria científica valorizava majoritariamente homens brancos e silenciava profissionais negros e mulheres. Visões contrárias, quando existiam, muitas vezes eram sistematicamente excluídas dos espaços de discussão.
Mais do que questionar apenas Hoffman, é essencial entender por que seu estudo foi aceito como “erudito” e como serviu aos interesses da indústria de seguros, que via nos cálculos estatísticos uma ferramenta para legitimar a exclusão dos afro-americanos do acesso à proteção financeira.
O caso expõe como a aplicação enviesada de métodos científicos pode perpetuar desigualdades — algo que segue ecoando até hoje no setor.
Em um momento em que a indústria dos seguros expandia seu poder econômico e social, a publicação de Race Traits contribuiu para contrariar uma luta de um século dos afro-americanos por acesso aos serviços e à segurança proporcionados pelas apólices de seguro.
A Prudential escolheu Hoffman para escrever esse documento por causa de suas habilidades estatísticas e de sua visão racial; ao escrevê-lo, ele serviu aos propósitos da indústria de seguros ao aplicar ideologia social aos métodos matemáticos.
Vale lembrar que 1896 também foi o ano da decisõe da Suprema Corte dos EUA “Plessy vs Ferguson” , que confirmou a segregação racial “separados, mas iguais” como doutrina constitucional; emenda que apenas proibiu a escravidão mas ela não concedeu cidadania nem igualdade de direitos – As Leis Jim Crow.
RACE TRAITS, SUA RECEPÇÃO E SEUS CRÍTICOS
O Journal of the American Economic Association dedicou duas edições inteiras a Race Traits and Tendencies of the American Negro. Hoffman reuniu um vasto acervo de dados demográficos, estatísticas de saúde, encarceramento e até registros da Guerra Civil, criando o maior compilado sobre os negros americanos já impresso até então. A obra foi recebida como “definitiva”: elogiada pela clareza, pela riqueza estatística e pelo suposto rigor científico.
Hoffman, imigrante alemão, chegou a afirmar que estava livre de qualquer viés, mas sua análise partia de uma premissa falha: a ideia de que a mortalidade elevada dos negros era resultado direto de sua “inferioridade racial”. Em outras palavras, ele concluiu que os negros morriam porque eram inferiores — e eram inferiores porque morriam. Uma tautologia que reduzia desigualdades sociais e econômicas a uma explicação biológica.
Ainda no período, intelectuais como W. E. B. Du Bois e Kelly Miller denunciaram as distorções de Hoffman, apontando que ele ignorava fatores socioeconômicos.
Du Bois mostrou, por exemplo, que quando comparados a grupos brancos pobres ou imigrantes em condições semelhantes, os índices de mortalidade dos negros eram equivalentes ou até melhores.
A crítica central era clara: Hoffman agregava dados de diferentes contextos e apagava qualquer explicação que não fosse a raça.
Mesmo assim, os elogios sobrepuseram-se às críticas.
Por anos, Race Traits permaneceu como referência acadêmica, reforçando preconceitos e consolidando a estatística como ferramenta de exclusão.

FILOSOFIAS DA INDÚSTRIA DE SEGUROS
A narrativa de Race Traits reforçava a ideia de que os afro-americanos eram inasseguráveis, mas suas conclusões serviam muito mais aos interesses da Prudential do que a qualquer rigor científico.
Como lembra o cientista político Brian Glenn, seguros se baseiam menos em números e mais nas histórias que definem quais riscos importam.
Essas narrativas, muitas vezes carregadas de preconceitos, moldam políticas empresariais mesmo quando são irrelevantes para prever perdas reais.
De fato, no final do século XIX os negros sofriam taxas de mortalidade elevadas, mas não diferentes de outros grupos pobres e imigrantes que continuaram sendo aceitos pelas seguradoras.
A exclusão dos afro-americanos tinha menos a ver com dados de saúde e mais com o peso simbólico: para a indústria, associar sua imagem de progresso e prosperidade à comunidade negra era inconcebível num contexto de supremacia branca.
O discurso racista transformava desigualdade social em biologia, naturalizando a ideia de que os negros estavam “destinados” ao declínio, enquanto os brancos prosperariam mesmo em condições adversas. Essa lógica apagava qualquer explicação estrutural — pobreza, falta de acesso à saúde, marginalização econômica — e reduzia o “problema” à própria raça.
Mais do que estatísticas, o que sustentou a decisão da Prudential foi um cálculo político e econômico: segurar vidas negras não gerava prejuízo pelos riscos em si, mas porque poderia afastar clientes brancos.
Na prática, o valor atribuído às vidas negras era menor, e isso moldou a política do setor por décadas. A matemática atuária serviu apenas como verniz científico para justificar publicamente escolhas ditadas por racismo e mercado.
É impossível discutir abertamente a exclusão dos afro-americanos dos seguros comercializados no século XIX sem considerar a influência do supremacismo branco da época.
O conceito básico de supremacia branca predominante sustentava que vidas negras simplesmente não tinham o mesmo valor que as vidas brancas, nem tampouco eram vistas como equivalentes a de qualquer outro grupo — inclusive os imigrantes com quem compartilhavam condições econômicas.
As alegações da Prudential de que segurar vidas negras causava prejuízo eram falsas.
Embora a empresa esperasse perdas financeiras, isso não acontecia por conta da mortalidade diferencial, mas sim pela redução nas vendas aos clientes brancos, supostamente relutantes em fazer negócios com uma empresa que aceitasse segurar negros.
Artigo Original: The Myth Of The Actuary: Life Insurance And Frederick L. Hoffman’s Race Traits And Tendencies Of The American Negro | Por: Megan J Wolff
